5.1 Psiquiatria e psicologia criminal
No campo da medicina legal, sob a rubrica psicopatologia criminal ou psicopatologia forense, envolvem-se dois grandes ramos da ciência médica: a psiquiatria criminal e a psicologia criminal. Alguns autores preferem as denominações “psicologia forense” e “psiquiatria forense”, mas não são de melhor técnica, na medida em que a maior parte de suas atividades periciais dá-se no curso da investigação criminal (inquérito policial).
A psicologia criminal tem por objeto de estudo a personalidade “normal” e os fatores que possam influenciá-la, quer sejam de índole biológica, mesológica (meio ambiente) ou social.
Por seu turno, a psiquiatria criminal tem por escopo o estudo dos transtornos anormais da personalidade, isto é, as doenças mentais, retardos mentais (oligofrenias), demências, esquizofrenias e outros transtornos, de índole psicótica ou não.
5.2 Distúrbios mentais e crime
O CID-10 descreve oito tipos de transtornos específicos de personalidade, a saber: paranoide, esquizoide, antissocial, emocionalmente instável, histriônico, anancástico, ansioso e dependente.
Transtornos de personalidade – CID – 10 |
1) Transtorno paranoide: predomina a desconfiança, a sensibilidade excessiva a contrariedades e o sentimento de estar sempre sendo prejudicado pelos outros; atitudes de autorreferência. |
2) Transtorno esquizoide: predomina o desapego; ocorre desinteresse pelo contato social, retraimento afetivo, dificuldade em experimentar prazer; tendência à introspecção. |
3) Transtorno antissocial: prevalece a indiferença pelos sentimentos alheios, podendo adotar comportamento cruel; desprezo por normas e obrigações; dissimulação, baixa tolerância à frustração e baixo limiar para descarga de atos violentos. |
4) Transtorno emocionalmente instável: marcado por manifestações impulsivas e imprevisíveis. Apresenta dois subtipos: impulsivo e borderline. O impulsivo é caracterizado pela instabilidade emocional e falta de controle dos impulsos. O borderline, além da instabilidade emocional, revela perturbações da autoimagem, com dificuldade em definir as preferências pessoais e consequente sentimento de vazio. |
5) Transtorno histriônico: prevalece o egocentrismo, a baixa tolerância a frustrações, a teatralidade e a superficialidade. Impera a necessidade de fazer com que todos dirijam a atenção para a pessoa. |
6) Transtorno anancástico: prevalece a preocupação com detalhes, a rigidez e a teimosia. Existem pensamentos repetitivos e intrusivos que não alcançam, no entanto, a gravidade de um transtorno obsessivo-compulsivo. |
7) Transtorno ansioso (ou esquivo): prevalece a sensibilidade excessiva a críticas; sentimentos persistentes de tensão e apreensão, com tendência ao retraimento social por insegurança de sua capacidade social e/ou profissional. |
8) Transtorno dependente: prevalece a astenia do comportamento, a carência de determinação e de iniciativa, bem como a instabilidade de propósitos. |
Em virtude da conexão com o eixo temático, são dignos de nota os transtornos psicóticos (esquizofrenia), os transtornos de humor e de ansiedade.
Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos (DSM-IV) |
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Transtorno |
Sintomas |
Esquizofrenia – Tipo paranoide: predomínio de alucinações e delírios; – Tipo desorganizado: discurso e conduta inadequados; – Tipo catatônico: bizarrices, mutismo, negativismo, imobilidade motora; – Tipo indiferenciado: não se encaixa nos tipos anteriores; – Tipo residual: abulia, discurso pobre, afeto enfraquecido. |
Perturbação mínima de 6 meses, com no mínimo 1 mês de fase ativa dos seguintes sintomas (pelo menos dois deles): delírios, alucinações, comportamento catatônico e desorganizado, comportamento negativo |
Esquizofreniforme |
Quadro sintomático similar ao da esquizofrenia, porém de menor duração, de 1 a 6 meses, sem declínio no funcionamento |
Esquizoafetivo |
Ocorrem conjuntamente transtornos de humor e sintomas da fase ativa da esquizofrenia, antecedidos de um período mínimo de duas semanas de delírios ou alucinações |
Delirante |
1 mês de delírios não bizarros apenas |
Psicótico breve |
Perturbação com duração maior que 1 dia e remissão em 1 mês |
Psicótico induzido |
Perturbação desencadeada pela influência de outra pessoa com delírio similar |
Psicótico em face de uma condição |
Consequências fisiológicas de um quadro clínico geral |
Psicótico induzido por substância |
Decorrem de abuso de drogas ou toxinas |
Psicótico sem outra especificação |
Não se amoldam a critérios anteriores |
De outra banda, os transtornos do humor obedecem à classificação abaixo exposta:
Transtornos do humor |
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Transtorno |
Sintomas |
Depressivo maior |
Pelo menos 2 semanas de depressão, acompanhada de pelo menos quatro dos seguintes sintomas adicionais de depressão: alteração de peso, do sono, da psicomotricidade (lentidão ou agitação), fadiga, perda de energia, sentimento de inutilidade, culpa excessiva, dificuldade de concentração ou indecisão, pensamentos de morte, inclusive ideação suicida |
Distímico |
Pelo menos 2 anos de humor deprimido, acompanhado de outros sintomas depressivos não incluídos no depressivo maior |
Depressivo sem outra especificação |
Caracteres depressivos que não se inserem noutros tipos |
Bipolar I |
Um ou mais episódios maníacos ou mistos (maníacos e depressivos), em regra acompanhados de episódios depressivos maiores. Episódio maníaco: humor exagerado por uma semana, adicionado de autoestima inflada, insônia, loquacidade, fuga de ideias, agitação psicomotora, envolvimento excessivo em atividades prazerosas de alto risco, tais como compras excessivas, investimentos de risco etc. |
Bipolar II |
Um ou mais episódios depressivos maiores acompanhados de no mínimo um episódio hipomaníaco (similar ao maníaco, mas menos intenso) |
Ciclotímico |
Pelo menos 2 anos de períodos de numerosos sintomas hipomaníacos e depressivos que não se encaixam nas descrições respectivas de mania e depressão |
Bipolar sem outra especificação |
Sintomas bipolares inadequados ou que não se encaixam nos perfis aludidos |
Do humor devido a uma condição clínica geral |
Perturbação destacada e persistente de humor como consequência fisiológica de uma condição clínica geral |
Do humor induzido por substância |
Perturbação proeminente e persistente decorrente de abuso de drogas |
Do humor sem outra especificação |
Incluídos para a codificação de transtornos com sintomas de humor que não satisfazem os critérios para qualquer transtorno de humor específico, nos quais é difícil escolher entre transtorno depressivo sem outra especificação e transtorno bipolar sem outra especificação (ex.: agitação aguda) |
Finalizando, a ansiedade é um estado emocional de apreensão, uma expectativa de que algo ruim aconteça, acompanhada por várias reações físicas e mentais desconfortáveis.
Os transtornos de ansiedade podem ser analisados conforme a tabela que segue:
Transtornos de ansiedade |
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Transtorno |
Sintomas |
Transtorno de pânico sem agorafobia |
É caracterizado por ataques de pânico recorrentes e inesperados, de início súbito, em períodos distintos de forte apreensão e intenso temor ou terror, desconforto, associados a sentimentos de catástrofe iminente e acompanhados de pelo menos quatro dos seguintes sintomas: 1) palpitações ou ritmo cardíaco acelerado; 2) sudorese; |
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3) tremores ou abalos; 4) sensação de falta de ar ou sufocamento; 5) sensação de asfixia; 6) dor ou desconforto torácico; 7) náusea ou desconforto abdominal; 8) sensação de tontura, instabilidade, vertigem ou desmaio; 9) desrealização (sensação de irrealidade) ou despersonalização (estar distanciado de si mesmo); 10) medo de perder o controle ou enlouquecer; 11) medo de morrer; 12) parestesias (anestesia ou sensação de formigamento); 13) calafrios ou ondas de calor. Ademais, pelo menos um dos ataques foi seguido por 1 mês (ou mais) das seguintes características: a) preocupação persistente acerca de ter ataques adicionais; b) preocupação acerca das implicações do ataque ou suas consequências; c) alteração comportamental significativa relacionada aos ataques |
Transtorno de pânico com agorafobia |
Caracteriza-se por ataques de pânico, como no transtorno acima descrito, acompanhados de agorafobia, ou seja, ansiedade acerca de estar em locais ou situações de onde possa ser difícil (ou embaraçoso) escapar ou onde o auxílio possa não estar disponível, na eventualidade de ter um ataque de pânico inesperado ou predisposto por situações do tipo estar fora de casa desacompanhado, estar em meio a uma multidão, permanecer em uma fila, estar em uma ponte, viajar de automóvel, ônibus, trem, barco ou avião. As situações são evitadas ou exigem companhia ou, se isso não for possível, são suportadas com acentuado sofrimento, com ansiedade acerca de ter um ataque de pânico ou sintomas do tipo pânico |
Agorafobia sem história de transtorno de pânico |
As características essenciais, principalmente o comportamento evitativo, desse transtorno são similares àquelas do transtorno de pânico com agorafobia, exceto que o cerne do temor está na ocorrência de sintomas tipo pânico (p. ex., tontura ou diarreia), incapacitantes (p. ex., desmaiar desamparado) ou extremamente embaraçosos (p. ex., perda do controle urinário) ou ataques com sintomas de pânico limitados, ao invés de ataques de pânico completos |
Fobia específica |
Caracteriza-se pelo medo acentuado e persistente, excessivo ou irracional (reconhecidamente pelo indivíduo adulto), revelado pela presença ou antecipação de um objeto ou situação fóbica (p. ex., voar, altura, animais, injeção, sangue). A exposição ao estímulo fóbico provoca, quase invariavelmente, uma resposta imediata de ansiedade, que pode assumir a forma de um ataque de pânico ligado à situação ou predisposto pela situação. A situação fóbica é evitada ou suportada com intensa ansiedade ou sofrimento. A esquiva, antecipação ansiosa ou sofrimento na situação temida interferem significativamente na rotina normal do indivíduo, em seu funcionamento ocupacional em atividades ou relacionamentos sociais, ou existe acentuado sofrimento acerca de ter a fobia |
Fobia social |
Caracteriza-se pelo medo acentuado e persistente de uma ou mais situações sociais ou de desempenho, nas quais o indivíduo é exposto a pessoas estranhas ou à possível escolha por outras pessoas. O indivíduo teme agir de um modo que lhe seja humilhante e embaraçoso. A exposição à situação temida quase invariavelmente provoca ansiedade, que pode assumir a forma de pânico ligado à situação ou predisposto pela situação. A pessoa reconhece que o medo é excessivo ou irracional, e as situações sociais e de desempenho temidas são evitadas ou suportadas com intensa ansiedade ou sofrimento. A esquiva, antecipação ansiosa ou sofrimento na situação social ou de desempenho temida interferem significativamente na rotina, funcionamento ocupacional, atividades sociais ou relacionamentos individuais, ou existe sofrimento acentuado por ter a fobia |
Transtorno obsessivo-compulsivo |
Neste transtorno, as obsessões se caracterizam por: 1) pensamentos, impulsos ou imagens recorrentes e persistentes que, em algum momento durante a perturbação, são experimentados como intrusivos e inadequados e causam acentuada ansiedade ou sofrimento; 2) os pensamentos, impulsos ou imagens |
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não são meras preocupações excessivas com problemas da vida real; 3) a pessoa tenta ignorar ou suprimir tais pensamentos, impulsos ou imagens, ou neutralizá-los com algum outro pensamento ou ação; 4) a pessoa reconhece que os pensamentos, impulsos ou imagens obsessivos são produto de sua própria mente (não impostos a partir de fora). As compulsões se caracterizam por: 1) comportamentos repetitivos (p. ex., lavar as mãos, organizar, verificar) ou atos mentais (p. ex., orar, contar ou repetir palavras em silêncio) que a pessoa se sente compelida a executar em resposta a uma obsessão ou de acordo com regras que devem ser rigidamente aplicadas; 2) os comportamentos, ou atos mentais, visam prevenir ou reduzir o sofrimento ou evitar algum evento ou situação temida, muito embora esses comportamentos, ou atos mentais, não tenham uma conexão realista com o que visam neutralizar ou evitar ou sejam claramente excessivos. Em algum ponto durante o curso do transtorno, o indivíduo reconhece que as obsessões e compulsões são excessivas ou irracionais. As obsessões ou compulsões causam acentuado sofrimento, consomem tempo ou interferem significativa na rotina, funcionamento ocupacional, atividades ou relacionamentos sociais habituais do indivíduo |
Transtorno de estresse pós-traumático1 |
Caracteriza-se por rememórias persistentes de experiência ocorrida com evento traumático de uma ou mais das seguintes maneiras: 1) recordações aflitivas, recorrentes e intrusivas do evento, incluindo imagens, pensamentos e/ou percepções; 2) sonhos aflitivos amedrontadores sem conteúdo identificável; 3) agir ou sentir como se o evento traumático estivesse ocorrendo |
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novamente; 4) sofrimento psicológico intenso em face de exposição a indícios internos ou externos que lembrem algum aspecto do evento traumático; 5) reatividade fisiológica na exposição a indícios internos ou externos que lembrem algum aspecto do evento traumático. Ademais, ocorre esquiva persistente a estímulos associados ao trauma e entorpecimento da responsabilidade geral (não presente antes do trauma), indicados por três (ou mais) dos seguintes quesitos: 1) esforços no sentido de evitar pensamentos, sentimentos ou conversas associados ao trauma; 2) esforços no sentido de evitar atividades, locais ou pessoas que ativem recordações do trauma; 3) incapacidade de recordar algum aspecto importante do trauma; 4) redução acentuada do interesse ou da participação em atividades significativas; 5) sensação de distanciamento ou afastamento em relação a outras pessoas; 6) restrição do afeto; 7) sentimento de um futuro abreviado (p. ex., não espera ter uma carreira profissional, casamento, filhos ou um período normal de vida). Nesse transtorno, ocorre também aumento da excitabilidade, indicada por dois (ou mais) dos seguintes sintomas: 1) dificuldade em conciliar ou manter o sono; 2) irritabilidade ou surtos de raiva; 3) dificuldade em concentrar-se; 4) hipervigilância; 5) resposta de sobressalto exagerada. A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo |
Transtorno de estresse agudo |
Caracteriza-se pela presença de três (ou mais) dos seguintes sintomas dissociativos, enquanto o indivíduo vivenciava ou após vivenciar evento aflitivo: 1) sentimento ou sensação de anestesia, distanciamento ou ausência de resposta emocional; 2) redução da consciência em relação às coisas que o rodeiam (p. ex.: “estar como num sonho”); 3) desrealização; 4) despersonalização; 5) amnésia |
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dissociativa (incapacidade de recordar aspecto importante do trauma). O evento traumático é persistentemente revivido, no mínimo, de uma das seguintes maneiras: imagens, pensamentos, sonhos, ilusões e episódios de flashback recorrentes, sensação de reviver a experiência, ou sofrimento quando da exposição a lembretes do evento traumático. Também se caracteriza pela acentuada esquiva a estímulos que provoquem recordações do trauma (p. ex., pensamentos, sentimentos, conversas, atividades, pessoas e locais). Ademais, ocorrem sintomas acentuados de ansiedade ou maior excitabilidade (p. ex.: dificuldade para dormir, irritabilidade, fraca concentração, hipervigilância, resposta de sobressalto exagerada, inquietação motora). A perturbação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo e prejudica sua capacidade de realizar alguma tarefa necessária, como obter o auxílio necessário ou mobilizar recursos pessoais, contando aos membros da família acerca da experiência traumática |
Transtorno de ansiedade generalizada |
A característica essencial deste transtorno se refere a uma preocupação excessiva (expectativa apreensiva), acompanhada de pelo menos três (ou mais) dos seguintes sintomas, presentes na maioria dos dias nos últimos 6 meses: 1) inquietação ou sensação de estar com os “nervos à flor da pele”; 2) fatigabilidade; 3) dificuldade em concentrar-se ou sensações de “branco na mente”; 4) irritabilidade; 5) tensão muscular; 6) perturbação do sono (dificuldade em conciliar ou manter o sono, ou sono insatisfatório e inquieto). O foco da ansiedade não parece confinado a aspectos situacionais particulares, como ocorre nos demais transtornos, mas sim com diversos eventos ou atividades. O indivíduo considera difícil controlar a preocupação |
5.3 1Psicopatia e psicopatologia. Delinquência psicótica e delinquência neurótica
A classificação de transtornos mentais e de comportamento, em sua décima revisão (CID-10), descreve o transtorno específico de personalidade como uma perturbação grave da constituição caracterológica e das tendências comportamentais do indivíduo (o chamado delinquente caracterológico).
Essa perturbação não pode ser creditada diretamente a alguma doença, lesão ou outro transtorno psiquiátrico e, via de regra, relaciona-se a várias áreas da personalidade, ligando-se, na maioria dos casos, à ruptura familiar e social.
Os transtornos de personalidade não são tecnicamente doenças, mas anomalias do desenvolvimento psíquico, sendo consideradas, em psiquiatria criminal, perturbações da saúde mental.
Esses transtornos revelam desarmonia da afetividade e da excitabilidade com integração deficitária dos impulsos, das atitudes e das condutas, manifestando-se no relacionamento interpessoal.
De fato, os indivíduos portadores são improdutivos e seu comportamento é muitas vezes turbulento, com atitudes incoerentes e pautadas pelo imediatismo de satisfação (egoísmo).
No plano policial-forense os transtornos de personalidade revelam-se de extrema importância, pelo fato de seus portadores (especificamente os antissociais) muitas vezes se envolverem em atos criminosos.
Esse tipo de transtorno específico de personalidade é sinalizado por insensibilidade aos sentimentos alheios. Quando o grau de insensibilidade se apresenta extremado (ausência total de remorso), levando o indivíduo a uma acentuada indiferença afetiva, este pode assumir um comportamento delituoso recorrente, e o diagnóstico é de psicopatia (transtorno de personalidade antissocial, sociopatia, transtorno de caráter, transtorno sociopático ou transtorno dissocial).
Em 1995 o DSM-IV elaborou o seguinte conceito:
301.7 Transtorno de personalidade antissocial |
Característica essencial: padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros, que inicia na infância ou começo da adolescência e continua na fase adulta. Sinônimos: psicopatia, sociopatia ou transtorno de personalidade dissocial |
É bem verdade que o portador de psicopatia não é um doente, na acepção estrita do termo, no entanto se acha à margem da normalidade emocional e comportamental, ensejando dos profissionais de saúde e do direito redobrada atenção em sua avaliação.
Como já se disse, os indivíduos com deficiência de caráter são insensíveis aos sentimentos de terceiros, condição esta presente tanto nos sujeitos ambiciosos como naqueles cruelmente perversos.
Todavia, enquanto os criminosos comuns almejam riqueza, status e poder, os psicopatas apresentam manifesta e gratuita crueldade.
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Sob a rubrica de psicopatologias vislumbram-se as situações referidas no CID-10 que com maior incidência afetam vítimas e criminosos.
Ressalte-se que ao profissional do Direito (delegado de polícia, advogado, promotor de justiça, juiz) não cabe fazer um diagnóstico, missão precípua dos profissionais da área da saúde, no entanto é imperioso conhecer os sinais, na medida em que sugerem medidas preventivas e profiláticas que podem e devem ser tomadas. Dentre os possíveis transtornos anotem-se os de ansiedade; o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC); o de estresse pós-traumático e os dissociativos (amnésia dissociativa, fuga dissociativa, transtorno de transe ou obsessão (“possessão demoníaca”), transtorno de personalidade múltipla).
A delinquência psicótica é aquela praticada por “perturbado mental”, isto é, o agente criminoso ostenta um comprometimento de suas funções psíquicas. Antigamente era denominado alienado mental. A delinquência psicótica é a prática delitiva em face de uma perturbação mental qualquer. É imprescindível que, ao tempo da ação ou omissão, o sujeito ativo (autor) apresente suas funções mentais comprometidas.
Assim, a doutrina (Odon Maranhão, 2008) aponta as seguintes fases evolutivas na delinquência psicótica:
a) Episódio: é reversível e não repetitivo, existindo um único período mórbido entre dois períodos sadios, sem recidiva.
Período Sadio |
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Período Sadio |
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Fase Mórbida |
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b) Processo: ao contrário do episódio, o processo psicopatológico uma vez instalado é irreversível, apresentando duas fases, uma sadia e outra mórbida. Há duas situações jurídico-penais, isto é, o crime pode ter sido cometido durante a fase sadia e a doença instalar-se posteriormente (tratamento ao doente mediante medida de segurança em Manicômio Judiciário) ou pode ser que o crime venha a ser praticado na fase mórbida (internação imediata em Manicômio Judiciário).
Período Sadio |
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Período Mórbido |
c) Surto: ocorre de forma intermitente, alternando-se fases sadias e mórbidas que se sucedem. O “lúcido intervalo” é dificílimo de precisar, sendo esperável a repetição da fase doentia. É o caso das disritmias, toxicopatias etc.
Período Sadio |
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Período Sadio |
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Período Sadio |
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Período Mórbido |
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Período Mórbido |
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d) Defeito: é a sequela ou resíduo de manifestação psicopatológica anterior. Em verdade houve manifestação mórbida anterior (tratada ou não) cuja recuperação foi tão somente parcial, assumindo relevância nos casos de reincidência, concessão de livramento condicional, progressão de regime etc.
Período Sadio |
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Sequela |
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Período Mórbido |
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De outro lado, entende-se por delinquência neurótica a conduta criminosa decorrente da manifestação dos conflitos internos do sujeito consigo mesmo. O criminoso pratica o delito e tem consciência total ou parcial de que será punido por isso. A sanção serviria para aplacar-lhe a culpa e reduzir o conflito interno primário anterior.
José Osmir Fiorelli e Rosana Cathya Ragazzoni Mangini (2009, p. 339), reproduzindo o pensamento de Odon Maranhão, apresentam o seguinte estudo esquemático, traçando as diferenças e semelhanças entre neurose e personalidade delinquente:
Neurose |
Personalidade Delinquente ou dissocial (criminoso essencial) |
Conflito interno |
Aparentemente sem conflito interno |
Agressividade voltada para si |
Agressividade voltada à sociedade |
Gratificação por meio de fantasias |
Alívio de tensões internas por ações criminosas |
Admissão dos próprios impulsos e reconhecimento dos erros |
Atribuição de seus impulsos ao mundo exterior |
Desenvolvimento de reações emocionais positivas |
Desenvolvimento de defesas emocionais |
Superego desenvolvido |
Superego desarmônico |
Comportamentos socialmente ajustados |
Comportamento dissocial (desconsideração para com os códigos sociais) |
Reação à passividade e dependência com sofrimento, mas admitindo a situação |
Tentativa de negar a passividade e a dependência com atitudes agressivas |
Caráter normal |
Caráter deformado (dissocial) |
Perturbações psicossomáticas menos frequentes |
Perturbações psicossomáticas mais frequentes |
5.3.1 Análise psicológica do comportamento criminoso
Um indivíduo de boa formação moral e de bons princípios pode ter seu equilíbrio rompido e cometer uma infração penal por reação.
Como ressaltam Newton e Valter Fernandes2, “... essa conduta é psicologicamente atípica: trata-se de crime eventual (o agente tem uma personalidade normal). Noutras vezes, o indivíduo é possuidor de uma personalidade mórbida e o ato chega a ser sintoma de perturbação: trata-se de delinquência sintomática. Poderá ainda, existir defeito ou desvio de personalidade (por má constituição ou má formação), e o ato delituoso chega a ser a expressão do caráter: é o que ocorre com as ‘personalidades psicopáticas’ e personalidades delinquenciais”.
Nesse prisma, é importante verificar a dinâmica do ato criminoso, com a adição de fatores primários (constitucionais e psicoevolutivos) e secundários (agem sobre uma estrutura acabada) responsáveis pela conduta criminosa.
Esquematicamente:
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5.4 Personalidade perigosa. Serial killer
A periculosidade ou personalidade perigosa é aquela que apresenta propensão para o delito, por ser incapaz de assimilar as regras comportamentais e os padrões sociais. É um estado latente, in potentia.
Então, periculosidade é a qualidade que se conhece num indivíduo de ser perigoso à vida social contextualmente. De outro lado, fala-se ainda em temibilidade, quando o então perigoso passa à ação delitiva, manifestando seu caráter antissocial. A temibilidade é a periculosidade in acto.
Do ponto de vista criminológico, quando um assassino reincide em seus crimes no mínimo em três ocasiões e com certo intervalo de tempo entre cada um, é conhecido como assassino em série3 (serial killer).
A diferença entre o assassino em massa, que mata várias pessoas de uma só vez e sem se preocupar com a identidade destas, e o assassino em série é que este elege cuidadosamente suas vítimas, selecionando na maioria das vezes pessoas do mesmo tipo e características.
As análises dos perfis de personalidade estabelecem como estereótipo dos assassinos em série (evidentemente aceitando muitas exceções) homens jovens, de raça branca, que atacam preferentemente as mulheres, e cujo primeiro crime foi cometido antes dos 30 anos.
Alguns têm histórico de infância traumática, devida a maus-tratos físicos ou psíquicos, motivo pelo qual têm tendência a isolar-se da sociedade e/ou a vingar-se dela.
Essas frustrações, ainda segundo análises de estereótipos, introduzem os assassinos em série num mundo imaginário, melhor que o real, onde eles revivem os abusos sofridos, identificando-se, desta vez, com o agressor. Por essa razão, sua forma de matar pode ser de contato direto com a vítima: utiliza armas brancas, estrangula ou golpeia, quase nunca usa arma de fogo. Os crimes obedecem a uma espécie de ritual no qual se misturam fantasias pessoais com a morte.
Entre os assassinos em série se distinguem dois tipos: os paranoicos e os psicopatas. O primeiro atua em consequência de seus delírios paranoides, quer dizer, ouve vozes ou tem alucinações que o induzem ao assassinato. Esse tipo não costuma ter juízo crítico de seus atos.
Já o tipo psicopata é muito mais perigoso. Devido à capacidade de fingir emoções (dissimulação) e de se apresentar extremamente sedutor, consegue sempre enganar suas vítimas.
O psicopata busca constantemente o próprio prazer, é solitário, muito sociável e de aspecto encantador4. Ele tem a sólida convicção de que tudo lhe é permitido, excita-se com o risco e com o proibido. Quando mata, tem como objetivo final humilhar a vítima para reafirmar sua autoridade e realizar sua autoestima. Para ele, o crime é secundário, e o que interessa, de fato, é o desejo de dominar, de sentir-se superior.
Quanto a sua forma de atuar, os assassinos em série se dividem em organizados e desorganizados.
Organizados são os mais astutos, que preparam os crimes minuciosamente, sem deixar pistas que os identifiquem.
Os desorganizados, mais impulsivos e menos calculistas, atuam sem se preocupar com eventuais erros.
Uma vez capturados, os assassinos em série podem confessar seus crimes, às vezes se atribuindo a característica de serem mais vítimas que as pessoas que mataram.
As mulheres assassinas em série representam apenas 11% dos casos. Em geral são muito menos violentas que os assassinos homens e raramente cometem um homicídio de caráter sexual. Quando matam, não costumam utilizar armas de fogo e raramente usam armas brancas, sendo preferidos os métodos mais discretos e sensíveis (como os venenos).
Normalmente as assassinas planejam o crime cuidadosamente e de maneira sutil, apresentando-se como verdadeiros quebra-cabeças aos investigadores.
Essa singularidade faz com que possa passar muito tempo antes de a polícia conseguir identificá-las, localizá-las e prendê-las.
5.5 Transtornos sexuais (parafilias) e criminalidade
Parafilia é o termo atualmente empregado para os transtornos da sexualidade, antigamente chamados de “perversões”, denominação ainda usada no meio jurídico.
Investigar as parafilias é conhecer as variantes do erotismo em suas diversas formas de estimulação e expressão comportamental.
A parafilia, pela própria etimologia da palavra, diz respeito a “para”, de paralelo, ao lado de “filia”, de amor a, apego a.
Portanto, para estabelecer um quadro de parafilia, infere-se que se reconhece algo que é convencional (estatisticamente normal) para, em seguida, detectar o que estaria “ao lado” desse convencional.
Caracteriza-se a parafilia quando há necessidade de substituir a atitude sexual convencional (normal) por qualquer outro tipo de expressão sexual, sendo o substitutivo a preferida ou única maneira de a pessoa conseguir excitar-se e alcançar prazer.
Na lição de Ayush Morad Amar5“as parafilias são caracterizadas, até hoje, tanto como fenômeno de inclusão, quanto fantasia de estímulo erótico que, persistentemente e obcecadamente, inclui imagem idiossincrática ou bizarra, não sujeita ao controle voluntário, que não se associa, habitualmente, à norma imaginária idealizada de associação erótica de homem-mulher”.
Destarte, na parafilia os meios se transformam em fins, e, praticados de forma reiterada, tipificam um padrão de conduta rígido, que na maioria das vezes acaba por se transformar numa compulsão opressiva que impede alternativas sexuais.
A parafilia, quanto ao grau apresentado, pode ser leve, quando se expressa ocasionalmente; moderada, quando a conduta é mais frequentemente manifestada, e severa, quando chega a níveis de compulsão.
A psiquiatria criminal se interessa, predominantemente, pela forma grave, que para se caracterizar exige os seguintes requisitos:
a) Caráter opressor, com perda de liberdade de opções e alternativas. O parafílico não consegue deixar de atuar dessa maneira. |
b) Caráter rígido, significando que a excitação sexual só se consegue em determinadas situações e circunstâncias estabelecidas pelo padrão da conduta parafílica. |
c) Caráter impulsivo, que se reflete na necessidade imperiosa de repetição da |
A compulsão da parafilia severa pode vir a ocasionar atos criminosos, com graves consequências jurídicas. Exemplos: o pedófilo que espiará, tocará ou abusará de crianças, o necrófilo que violará cadáveres, o sádico que produzirá dores e lesões dolosas etc.
Os delitos sexuais mais comuns são: estupro, corrupção e abuso sexual de menores, exibicionismo (ato obsceno), sadismo (lesões) etc.
A perícia psiquiátrica procura relacionar o tipo de conduta com a personalidade do delinquente e, como sempre, avaliar se, por ocasião do crime, o criminoso tinha plena capacidade de compreensão do ato, bem como de se autodeterminar.
Sustenta, com clareza de estilo, Eduardo Del Campo (2007) que os distúrbios sexuais podem ser de quantidade (aumento ou diminuição, como nos casos de satiríase, ninfomania, frigidez etc.) ou de qualidade, abrangendo os desvios de instinto (erotomania, exibicionismo, pedofilia etc.), as aberrações sexuais (triolismo, vampirismo, necrofilia, sadismo, masoquismo etc.) e as inversões (pederastia e lesbianismo).
O DSM – IV apresenta apenas as seguintes parafilias, tidas como obsessivas de práticas socialmente inadequadas: exibicionismo, fetichismo, frotteurismo, pedofilia, masoquismo, sadismo e voyeurismo.
Para o DSM – IV, todas as demais parafilias são rotuladas como sem especificação.6
Transtornos sexuais, parafilias ou perversões |
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Denominação |
Características |
Apotemnofilia |
Prazer sexual com amputados |
Erotismo (satiríase no homem e ninfomania na mulher) |
Aumento exagerado do apetite sexual |
Lubricidade senil |
Aumento do apetite sexual na velhice |
Anafrodisia |
Redução do instinto sexual masculino |
Frigidez |
Redução do instinto sexual feminino; na forma aguda, pode levar à androfobia (horror ao sexo masculino) |
Erotomania |
Amor platônico, casto |
Autoerotismo (aloerotismo) |
Orgasmo sem o outro, apenas contemplativo (por fotos) |
Erotografia ou erotografomania |
Prazer pela escrita erótica |
Exibicionismo |
Prazer pela exposição dos órgãos genitais em público |
Narcisismo |
Culto extremo pelo próprio corpo (geralmente em mulheres). Metrossexualismo (homens que cultivam a beleza e gastam muito tempo e dinheiro com a aparência) |
Mixoscopia ou Voyeurismo |
Prazer em observar o ato sexual de outras pessoas |
Fetichismo |
Excitação anormal por partes do corpo do parceiro ou por suas roupas íntimas |
Riparofilia |
Atração sexual por pessoas sujas, sem higiene |
Urolagnia |
Prazer sexual em observar o parceiro urinando (ondinismo) |
Coprofilia |
Prazer sexual ligado às fezes |
Coprolalia |
Prazer sexual ligado a palavras de baixo calão, chulas |
Bestialismo, bestialidade, zoolagnia, zoofilismo, zoofilia e zooerastia |
Atos libidinosos (bestialismo, bestialidade, zoofilismo ou zoolagnia) ou ato sexual em si mesmo (zooerastia) com animais |
Necrofilia |
Prazer sexual compulsivo com cadáveres |
Sadismo |
Prazer sexual mediante a imposição de suplícios e dores cruéis ao parceiro |
Masoquismo |
Prazer sexual obtido pelo sofrimento físico ou moral recebido |
Sadomasoquismo |
Conjugação do prazer sexual de causar dor no parceiro e experimentar dor também |
Flagelação ou flagelatismo |
Sadismo específico por meio de chicotadas |
Autoestrangulação erótica6 |
Prazer sexual obtido mediante a simulação de autoestrangulação e masturbação |
Escatologia telefônica |
Prazer sexual mediante conversa telefônica erótica, por vezes chula |
Cleptofilia |
Prazer sexual mediante a subtração de bens do parceiro |
Homossexualismo |
Alteração da personalidade sexual normal. Não se confunde com o intersexualismo (sexo indefinido de origem genética ou anatômica), com o transexualismo (alteração psicológica grave que leva o indivíduo a querer integrar o sexo oposto, vestindo-se como o outro e, nos casos extremos, submetendo-se a cirurgia de mudança de sexo; não se considera homossexual) nem com travestismo (prazer em usar vestes do outro sexo, com tendências homossexuais) |
Gerontofilia ou cronoinversão |
Instinto sexual e predileção dos jovens por pessoas idosas |
Cromoinversão |
Atração sexual obsessiva por pessoas de cor diferente |
Etnoinversão |
Atração sexual obsessiva por pessoas de raça diferente |
Topoinversão |
Prazer sexual pelo coito ectópico ou por atos diversos da conjunção carnal (sexo anal, oral, entre os dedos etc.). Consideram-se preliminares normais a fellatio in ore e o cunnilingus |
Swing ou troca de casais |
Desvio obsessivo em trocas interconjugais |
Onanismo |
Prazer solitário pela masturbação |
Edipismo |
Tendência sexual ao incesto |
Pedofilia e hebefilia |
Prazer sexual com crianças e prazer sexual com adolescentes do sexo masculino |
Pigmalionismo |
Excitação erótica por estátuas |
Frotteurismo |
Desvio sexual caracterizado pelo desejo de se esfregar em outrem |
Pluralismo ou triolismo (ménage à trois) |
Ato sexual com pluralidade de parceiros (três ou mais). Sexo grupal, swapping ou suruba |
Vampirismo |
Prazer sexual pela ingestão do sangue do parceiro |
1 É conhecida a síndrome de Estocolmo, caracterizada por um estado psicológico particular desenvolvido por pessoas que são vítimas de sequestro. A síndrome se desenvolve a partir de tentativas da vítima de se identificar com seu captor ou de conquistar a simpatia do sequestrador, num instinto de autopreservação.
2 Op. cit., p. 322.
3 Jack, o estripador (Jack the ripper) foi o pseudônimo dado a um assassino em série não identificado que agiu no miserável distrito de Whitechapel, em Londres, na segunda metade de 1888.
4 Recentemente a telenovela abordou com eficiência o tema da psicopatia criminal, com a personagem Yvone, de “Caminho das Índias”, interpretada pela atriz Letícia Sabatella, que demonstrava ânsia de se sair bem na vida, pouco importando o sofrimento alheio, sem remorso e de forma dissimulada.
5 Op. cit., p. 448.
6 Recentemente a imprensa noticiou a morte, por autoestrangulação erótica, do ator norte-americano David Carradine, famoso por interpretar o personagem da série televisiva Kung Fu, nos anos 70 (Folha on line, 04-06-2009).