3.1 Modernas teorias antropológicas
Sabe-se que a criminologia deita raízes históricas nos estudos antropológicos, que de início se ligavam à antropometria (estudo das características corporais e de sua correlação com a criminalidade).
Embora recusada a teoria do criminoso nato de Lombroso, os estudos antropológicos modernos acabaram por herdar um pouco daquela análise positivista.
Benigno di Tullio desenvolveu o método biotipológico constitucionalista, em que se dava maior crédito ao processo dinâmico de formação da personalidade em contraposição ao enfoque estático lombrosiano.
Resumidamente, para Di Tullio1, “a hereditariedade, sem embargo, não transmite a criminalidade, senão somente a predisposição criminal ou o processo mórbido que requer, ademais, a concorrência de outros fatores criminógenos”.
Desde o início do século XX diversos estudos foram efetuados, visando associar o comportamento humano (em especial o criminal) com os processos hormonais ou endócrinos patológicos ou certas disfunções glandulares internas. Assim se fazia em razão da interconexão entre as glândulas hormonais e o sistema neurovegetativo e deste, por seu turno, com a vida instinto-afetiva do homem.
Ensejou-se, por conseguinte, a noção de homem como ser químico, com as naturais consequências de que qualquer desequilíbrio na composição hormonal poderia refletir diretamente em seu comportamento e sua personalidade.
De qualquer sorte, as teorias endocrinológicas diferenciam-se da teoria lombrosiana em três aspectos: a) não defendem a hereditariedade dos transtornos hormonais glandulares, salvo no caso dos crimes sexuais; b) viabilizam tratamento hormonal curativo; c) afirmam que a influência criminógena não é direta, mas sim indireta.
Di Tullio simplificou os estudos endocrinológicos com as seguintes conclusões:
• notas de hipertireoidismo e de hipersuprarrenalismo em delinquentes homicidas e sanguinários constitucionais |
• distireoidismo nos criminosos ocasionais impulsivos |
• distireoidismo e dispituitarismo nos criminosos contra a moral e os bons costumes |
• hipertireoidismo nos delinquentes violentos |
• dispituitarismo nos ladrões, falsificadores e estelionatários |
3.3 Genética e hereditariedade
Os avanços na engenharia genética (Projeto Genoma) levantaram inúmeras questões atinentes à hereditariedade criminal, renovando, de certo modo, a corrente do atavismo.
Como sustentam Pablo de Molinas e Luiz Flávio Gomes (2008), certo percentual de indivíduos unidos por consanguinidade entre doentes mentais e a presença de um fator hereditário degenerativo ou doentio muito superior em delinquentes do que em não criminosos (hereditariedade pejorativa) foram dois dados estatísticos comprovados.
Todavia, nem todos os dados biológicos podem ser atribuídos à hereditariedade, pois existem também fenômenos de “mutações genéticas” e de “rebeliões contra a identidade”.
Nas pesquisas sobre a carga hereditária há preferência sobre os estudos de famílias criminais, gêmeos e adotados e malformações cromossômicas.
Nas famílias criminais (famílias com descendentes criminosos) observa-se mais uma linhagem de descendência do que uma “árvore genealógica”. As investigações aqui desenvolvidas não demonstraram que a degeneração, transmitida por via hereditária, era causa de criminalidade.
Resumindo, os estudos de Lund, Göring e outros comprovaram cientificamente que a proporção de criminosos condenados por delitos graves é maior entre aqueles cujos pais também foram delinquentes.
O estudo dos gêmeos foi efetuado com dois dados fundamentais: maior semelhança da carga genética (univitelinos ou idênticos) e menor semelhança (bivitelinos ou fraternos) e respectivos dados criminais.
Os primeiros estudos demonstraram maior incidência ou coincidência de casos criminais nos gêmeos idênticos e menor incidência nos bivitelinos.
No entanto, as pesquisas mais recentes dão conta de que é preciso analisar o tipo de crime em face da predisposição genética, pois os índices de concordância delitiva são muito maiores nos delitos sexuais que em outra modalidade.
Os estudos sobre adoção levam em consideração a influência genética ao acompanhar as condutas de criminosos e não criminosos adotados e sua respectiva interação com os pais biológicos e adotivos, conforme sejam estes últimos criminosos ou não. Constatou-se que os filhos biológicos de criminosos cometem crimes com maior frequência que os filhos adotados deles.
As conclusões das pesquisas revelaram ser mais factível que o comportamento criminal se apresente naquele adotado que tem pai biológico com antecedentes criminais, e que os índices de criminalidade nos adotados aumentam, seletivamente, mais em virtude dos antecedentes dos pais biológicos do que dos adotivos.
Por sua vez, as malformações cromossômicas, inicialmente estudadas em reclusos e enfermos, demonstram que as disfunções eram diagnosticadas em virtude do excesso de cromossomos ou de um defeito na composição dos gonossomos ou cromossomos sexuais.
Sabe-se que cada indivíduo tem 23 pares de cromossomos, e que um desses pares é o gonossomo ou cromossomo sexual. Na mulher esse cromossomo é designado por (XX); no homem, por (XY).
As principais malformações observadas foram as seguintes:
a) por defeito → síndrome de Turner (XO); |
b) por excesso → 1) na mulher: anomalias cariotípicas, XXX, XXXX e XXXXX; 2) no homem, a síndrome de Klinefelter (XXY, XXXY, XXXXY ou XXXYY); 3) a trissomia XYY. |
As investigações científicas acerca da sintomatologia e consequências dessas síndromes ainda dependem de estudos mais aprofundados.
Os avanços recentes na área médica tornaram difícil traçar uma linha divisória entre “doenças do cérebro” (neurológicas) e “doenças da mente” (psiquiátricas).
Os tempos atuais vieram a demonstrar o erro que foi separar as doenças do cérebro das doenças da mente.
Existe grande proximidade entre elas, cujo elemento catalisador é o conhecimento neurocientífico.
Nesse sentido, “é bem sabido que pacientes que têm doença de Parkinson ou acidentes vasculares encefálicos (doenças do cérebro) apresentam depressão e, eventualmente, demência (‘doenças’ da mente). Por outro lado, evidências recentes e convincentes obtidas a partir de estudos de neuroimagem com ressonância magnética funcional (RMf) e tomografia por emissão de pósitrons (TEP) tornaram claro que doenças tratadas no campo da Psiquiatria, tais como o transtorno afetivo bipolar e a esquizofrenia, para as quais uma base orgânica era incerta, são doenças também associadas a mudanças na estrutura e no funcionamento cerebral”2.
É um trabalho árduo o de conceituar, ainda que sinteticamente, as diversas doenças do cérebro e da mente, chamadas também de transtornos neuropsiquiátricos.
A Associação Americana de Psiquiatria, com seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR/2000), e a Organização Mundial de Saúde, com sua Classificação Internacional de Doenças (CID-10), adotam a expressão “transtornos mentais” para descrever as condições mórbidas da mente.
É preciso separar os conceitos de transtornos orgânicos em contraposição aos transtornos funcionais, pois na CID-10 a expressão “transtornos mentais orgânicos” é usada para delimitar vários transtornos mentais unificados por uma etiologia comum – doença ou lesão cerebral que geram disfunção.
A disfunção é dita primária quando resulta de doenças, lesões etc. que atingem diretamente o cérebro; secundária, quando decorre de doenças e desequilíbrios sistêmicos que atacam o cérebro como um dos órgãos envolvidos.
Por seu turno, os responsáveis pela elaboração do DSM-IV-TR eliminaram o conceito de transtorno mental orgânico.
A neurociência decidida auxilia a psiquiatria e a neurologia por intermédio de contribuições conceituais e experimentais.
Na parte conceitual, proporcionou o realinhamento da psiquiatria com a neurologia, por meio de uma abordagem mais coesa de vários transtornos cognitivos, dentre os quais o autismo, o retardo mental, o mal de Alzheimer e a perda de memória em face de senilidade.
No aspecto experimental, a neurociência possibilitou “importantes insights3 genéticos e biológicos sobre as causas e a patogênese de uma variedade de doenças neurológicas, tais como a distrofia muscular, a doença de Huntington, as doenças dos canais iônicos (em inglês conhecidas como channelopathies) e as formas familiares da doença de Alzheimer e da esclerose lateral amiotrófica”4
Porém, os pesquisadores são concordes no sentido de que a mais avançada contribuição da neurociência para a medicina nos últimos vinte anos foi a aplicação ao sistema nervoso de técnicas de genética molecular e biologia celular, não apenas pela identificação, mas também pela clonagem e sequenciamento de uma quantia cada vez maior de genes neurais; a criação de animais transgênicos5; o desenvolvimento de animais por meio da recombinação homóloga (processo conhecido como knock-out6) etc.
Especificamente, tais estudos e pesquisas identificaram mutações responsáveis por várias moléstias, entre elas a doença de Huntington7, as ataxias espinocerebelares, o mal de Alzheimer etc.
Alguns transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia e o transtorno bipolar (antiga psicose maníaco-depressiva), têm origem poligênica, e a identificação dos genes envolvidos continua a ser muito difícil.
No entanto, os avanços da engenharia genética deram origem a significativas repercussões na psiquiatria científica, sobretudo nas seguintes vertentes: 1) estudos de anormalidades cromossômicas; 2) estudos de linhagens de famílias que apresentam grande índice de portadores de transtornos mentais; 3) interação gene e meio ambiente; 4) novas abordagens da regulação neuronal (descobertas do Projeto Genoma Humano); 5) neuropatologia da esquizofrenia (alargamento de ventrículo cerebral) e 6) os marcadores biológicos para vários transtornos psiquiátricos (neuroimagem funcional).
Importante descoberta deu-se no sentido de que em certas regiões do cérebro humano adulto há células-tronco neurais persistentes, que podem originar várias classes de neurônios e células gliais8. Esse achado possibilitou uma renovação de esperanças, na medida de sua potencial utilização no conserto do tecido cerebral danificado ou doente.
1 Apud Luiz Flávio Gomes e Antonio Garcia-Pablos de Molina, op. cit., p. 225.
2 Apud Roberto Lent, Neurociência da mente e do comportamento, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008, p. 304.
3 A palavra “insight” é definida na língua inglesa como a capacidade de entender verdades escondidas; uma percepção intuitiva. Esses são seus significados no campo da psicologia.
4 Apud Roberto Lent, op. cit., p. 308.
5 Os animais transgênicos são aqueles que tiveram o patrimônio genético alterado com a introdução de genes de outras espécies que não a sua.
6 Segundo Cecilia Rocha, “Hoje em dia, a manipulação genética gera animais que tiveram genes adicionados (transgênicos por adição), retirados (knockout) ou modificados (knocking in e knockout condicional). Tais alterações afetam todas as células do organismo possibilitando uma análise biológica da proteína cujos genes foram manipulados” (www.uff.br/animaislab/ap9.doc. Acesso em 19-10-2009).
7 A doença de Huntington é um mal progressivo e hereditário caracterizado por demência, alterações de personalidade e distúrbios de movimento.
8 As células gliais são células não neuronais do sistema nervoso central que proporcionam suporte e nutrição aos neurônios. Geralmente arredondadas, no cérebro humano as células da glia são cerca de 10 vezes mais numerosas que os neurônios. Ao contrário do neurônio, que é amitótico, nas células gliais ocorre a mitose.