2º Capítulo

Personalidade e crime



2.1 Conceito de personalidade

Foi Rousseau quem discorreu sobre os elementos externos que influenciavam o comportamento humano e sua desenvoltura vivencial (a sociedade é que corrompe o homem). Não se pensou que justamente essa sociedade poderia refletir todas as tendências humanas. Os homens trazem em si um potencial corruptor, que, agindo sobre outros indivíduos sujeitos à corrupção, produzem um efeito corruptível. Ou seja, trata-se de um demérito tipicamente humano.

Outro conceito de personalidade foi baseado na constituição biotipológica, segundo a qual a genética não estaria limitada exclusivamente à cor dos olhos, dos cabelos, da pele, à estatura, aos distúrbios metabólicos e, às vezes, às malformações físicas, mas também determinaria forte influência sobre seu temperamento e suas relações com o mundo.

Hoje em dia é inapropriado pensar na personalidade humana como consequência inarredável do meio ambiente. Não pode, tampouco, ser considerado um punhado de genes, resultando numa máquina programada a agir desta ou daquela maneira, conforme teriam agido exatamente os seus ascendentes biológicos. Daí inferir que em sua composição interagem elementos biológicos, psicológicos e sociais.

Entende-se por “personalidade” a síntese de todos os elementos que concorrem para a conformação mental de uma pessoa, de modo a lhe conferir fisionomia própria (Porot).

É a organização dinâmica dos aspectos ou elementos cognoscitivos, conativos, afetivos, fisiológicos e morfológicos do indivíduo (Sheldon).

Esquema da Personalidade:





A personalidade apresenta alguns traços característicos, quais sejam a unidade e a identidade (todo coeso e organizado); a vitalidade (conjunto animado); a consciência (intra e extrainformação do mundo) e as relações com o meio ambiente (limites do “eu” com o meio).

Como já se pontuou, não existe uma personalidade normal, mas sim várias personalidades normais, conforme os tipologistas esclarecem.

Segundo Kretschmer1, há três tipos somáticos: o leptossômico, o pícnico e o atlético, conforme desenhos e tabela abaixo:









Tabela Biopsicotípica de Kretschmer



Tipo
Constitucional

Características
Psí
quicas

Características
Físicas

Pícnico
(ciclotímico)

Oscilação entre euforia e depressão; elevada capacidade de sintonia com as pessoas; desenvolvimento da inteligência concreta; realista e prático; presunçoso e atuante; correlação com psicose maníaco-depressiva

Baixa estatura; membros curtos; tronco desenvolvido e adiposo; pescoço largo e curto; tipo físico de Sancho Pança; contornos arredondados

Leptossômico
(esquizotímico)

Oscilação entre anestesia e hipersensibilidade; baixa capacidade de sintonia com as pessoas; idealista e sonhador; tímido (introvertido) e retraído; facilidade para inteligência abstrata e conceitual; correlação com esquizofrenia

Alto; magro; pele seca e pálida; tórax estreito; costelas visíveis; músculos e ossos delgados; pescoço, pernas e braços longos; tipo físico de D. Quixote

Atlético
(epileptoide)

Perseverante; combativo; sem grande relevo intelectual; alta tolerância à dor; agressivo; interesse por esportes e correlação com a epilepsia

Viscoso; ombros largos; pelve estreita; ossos e músculos desenvolvidos; queixo grande; face angular; proeminências ósseas na face; porte marcial



Por sua vez, Sheldon desenvolveu uma tipologia na qual haveria uma correspondência entre certos tipos físicos (denominados endomorfo, mesomorfo e ectomorfo) e determinados temperamentos, respectivamente chamados de endotônico, mesotônico e ectotônico. Esses nomes derivam das camadas embrionárias realçadas em cada um: endoderma (sistema digestivo), mesoderma (músculos, ossos, sangue) e ectoderma (sistema nervoso, pele, órgãos dos sentidos). Assim, observem-se os desenhos esquemáticos e a tabela biopsicotípica respectiva:






Biopsicotipologia de Sheldon

Corpo

Endomórfico

Mesomórfico

Ectomórfico

Forma
Predominante

Redonda

Retangular

Linear

Características Básicas

Barriga saliente, membros curtos, cabeça esférica

Ossos e músculos desenvolvidos, tórax proeminente, cabeça cúbica

Ossos finos,
m
úsculos leves, membros longos, face triangular

Temperamento

Endotônico

Mesotônico

Ectotônico

Prefere

Conforto físico

Aventura

Tempo para si mesmo

Em grupo

Mistura-se

Comanda

Isola-se

Qualidade

Tolerância e amor pelas pessoas

Amor ao poder e liderança

Consciência de si bem desenvolvida



2.2 Personalidade e crime

Alguns autores partem da constatação de que não existem diferenças de personalidade entre delinquentes e não delinquentes, não se podendo, portanto, conceituar ou dividir a personalidade em normal e anormal (Odon, Ayush, Marlet).

A pesquisa atual se orienta cada vez mais para a compreensão dos processos complexos pelos quais uma pessoa se envolve numa conduta delinquente, adquire uma identidade criminosa e adota, finalmente, um modo de vida delinquente (A personalidade criminal, Samuel Yochelsom, 1976).

A criminalidade moderna, entretanto, levando em conta as execuções em escolas, a atuação de snipers, a ação de crianças-bombas, o tráfico de órgãos etc., exige o desenvolvimento de outros modelos criminais.

Dessa forma, não estaríamos diante um conjunto de traços de personalidade determinantes de uma conduta criminosa, mas diante de uma ação delituo­sa resultante da interação entre determinados contextos e situações do meio, juntamente com um conjunto de processos cognitivos pessoais, afetivos e vivenciais, os quais acabariam por levar a pessoa a interpretar a situação de forma particular e a agir (criminosamente) de acordo com o sentido que lhe atribui.

Aqui também se pensa em determinada personalidade criminosa, personalidade esta produzida não apenas pelo arranjo genético, mas sobretudo pelo desenvolvimento pessoal.

De acordo com as modernas teorias da personalidade, seriam sete os sistemas que a constituem:






A inter-relação entre personalidade e conduta dá-se da seguinte forma: a personalidade é a matriz de produção da ação e define as condições e modalidades do agir, enquanto a conduta é o processo de materialização da personalidade.

Hoje em dia, alguns pesquisadores da criminalidade comum (agentes primários e reincidentes) não têm encontrado neles déficits ou psicopatologias suficientemente relevantes para se associar ao que se entende por personalidade criminosa ou comportamento criminal, verificando-se, pelo contrário, que esses sujeitos não se distinguem significativamente dos indivíduos ditos normais.

Atualmente é difícil aceitar a existência de uma personalidade tipicamente criminosa, composta por traços imutáveis e pré-definidos.

Advoga-se, sim, a existência de diferentes formas de organização e estruturação da personalidade, de diferentes maneiras de integrar os estímulos do meio e os processos psíquicos, e de diferentes maneiras de relação com o mundo exterior.

Seguindo esse raciocínio, o criminoso, como qualquer pessoa, estabelece uma representação da realidade, desenvolve uma ordem de valores e significados, na qual a transgressão adquire determinado sentido e se torna, em dado momento de sua história de vida, uma modalidade de vida.

Pode-se afirmar que os homens são essencialmente iguais e funcionalmente diferentes, ou seja, podem-se considerar iguais uns aos outros quanto à essência humana (ontologicamente), entretanto funcionam diferentemente uns dos outros.

Todas as tendências ideológicas que enfatizam a igualdade dos seres humanos, em total descaso para com as diferenças funcionais, ecoam aos ouvidos despreparados com eloquente beleza retórica, romântica, ética e moral.

Transpondo tais ideais do papel para a prática, sucumbem diante de incontáveis evidências em contrário: não resistem à constatação das flagrantes e involuntárias diferenças entre os indivíduos, e não explicam a indomável característica humana que é a perene vocação do homem de se diferenciar do outro.







1 Posteriormente, Kretschemer acrescentou o tipo displásico, que apresenta crescimento desproporcional e propensão aos crimes sexuais.