A vertente sociológica da criminalidade alcança níveis de influência altíssimos na gênese delitiva.
Entre os fatores mesológicos, logo no início da vida humana destaca-se a infância abandonada (lares desfeitos, pais separados, crianças órfãs). Assiste-se a um número crescente de crianças que ganham as ruas, transformando-se em pedintes profissionais, viciados em drogas, criminalizados, sob o tacão do “pai de rua”, que as explora economicamente.
Se for verdade que os avanços da engenharia genética, com a progressiva decodificação do genoma humano, podem contribuir para o esclarecimento definitivo de propulsões criminógenas herdadas, não é diferente, também, que a multiplicidade de fatores externos desencadeia um fator criminógeno, muitas vezes ausente no homem. Vejamos alguns desses fatores sociais.
14.2 Pobreza. Emprego, desemprego e subemprego
As estatísticas criminais demonstram existir uma relação de proximidade entre a pobreza e a criminalidade. Não que a pobreza seja um fator condicionante extremo de criminalidade, tendo em vista a ocorrência dos chamados “crimes do colarinho branco”, geralmente praticados pelas camadas mais altas da sociedade.
Por outro lado, nos crimes contra o patrimônio, a imensa maioria dos assaltantes é semialfabetizada, pobre, quando não miserável, com formação moral inadequada. Percebe-se que nutrem ódio ou aversão àqueles que detêm posses e valores. Esses sentimentos fazem crescer uma tendência criminal violenta no indivíduo.
Nesse sentido, as causas da pobreza, conhecidas de todos – má distribuição de renda, desordem social, grandes latifúndios improdutivos etc. –, somente funcionam como fermento dos sentimentos de exclusão, revolta social e consequente criminalidade. Por conseguinte, a repressão policial1 tem valor limitado, na medida em que ataca as consequências da criminalidade patrimonial e não as causas, justificando, no mais das vezes, as premissas da criminologia crítica ou radical.
Entre 55 e 90 milhões de pessoas passaram à condição de pobreza extrema em 2009 no Brasil, devido à recessão mundial resultante da crise financeira internacional. Mais de um bilhão sofre de fome crônica no mundo todo. Segundo pesquisas, 54 milhões de brasileiros são pobres; isso significa que quatro em cada dez brasileiros poderão viver em miséria absoluta. Esta retira o resquício de dignidade humana que a pobreza ainda não subtraiu ao homem.
No mesmo contexto, em países como o Brasil, com população jovial superior à idosa e instabilização entre as zonas rural e urbana, existe um desequilíbrio entre a área urbana e o contingente populacional, gerado não só pelo êxodo rural mas, também, pela migração interna desordenada. Ademais, com os altos índices de natalidade, a redução do nível de oferta de emprego, na medida em que o mundo globalizado exige cada vez mais especialização de mão de obra, assiste-se a uma verdadeira multidão de desempregados, o que pode significar um fator criminógeno preocupante.
O número de desempregados nos 39 municípios da região metropolitana de São Paulo aumentou em 154 mil de fevereiro para março de 2009, elevando o número de contingente para 1,551 milhão. O resultado supera em 11% o registrado no mês anterior e é o maior desde 1985, quando começou a ser feita a Pesquisa do Emprego e Desemprego (PED), realizada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).
É bem verdade que, se a pobreza pode facilitar a vida delitiva, a abastança também, caso contrário não haveria crimes do colarinho branco, lavagem de dinheiro, delitos ambientais, corrupção do Poder Público etc.
Ressalte-se que o subemprego ou desemprego disfarçado (“homem-placa”, “vendedores de balas em semáforos” etc.), à vista da baixíssima remuneração e da instabilidade pessoal e familiar que proporciona, não deixa de ser um fator coadjuvante na escala ascendente da criminalidade. Lembre-se também dos sacoleiros de fronteira, que, para aumentar seus ganhos, estimulam o descaminho e o contrabando com a revenda desses produtos País afora.
Finalizando, atente-se para a advertência formulada por Newton e Valter Fernandes (2002, p. 404): “Não obstante a corrupção também seja um problema de personalidade moral, é inescondível que sua ocorrência, no seio do funcionalismo público, igualmente se deve ao pequeno vencimento que a maioria dos servidores recebe”.
14.3 Meios de comunicação. Habitação
Dentre os fatores sociais de criminalidade, destaca-se a ação dos meios de comunicação em massa, sobretudo da televisão.
A televisão, a partir dos anos 1970, é o meio de comunicação que mais alcança os brasileiros, desbancando o rádio da posição que até então desfrutava.
Todavia, mediante o discurso libertário da absoluta liberdade de imprensa, assiste-se nas TVs à banalização do sexo e da violência em todos os horários.
As concessionárias de rádio e televisão, nas respectivas programações, descumprem um fundamento constitucional do Estado brasileiro: os programas da mídia devem voltar-se para o respeito aos valores éticos da pessoa humana e da família (art. 221, IV, da CF).
É claro que a televisão assume um papel pedagógico exponencial nos dias modernos, criando estereótipos de comportamento, enaltecendo o amor livre, incitando a banalização de violência, dentre outras atividades nefastas.
Dizem os policiais experimentados2: “o indivíduo chega em casa do trabalho, liga o televisor e desliga a família”, tamanha a influência que ela ocupa na vida humana, papel que nas próximas décadas certamente será ocupado pelo computador.
Em menor escala, mas ainda com relativa influência, registre-se o papel do rádio, do cinema e do teatro, sobretudo do primeiro, com o sensacionalismo de certos programas policiais, além da preocupante e crescente atuação das revistas, jornais e da própria mídia digital (internet), que intermedeiam a prostituição, o tráfico, o contrabando e outras mazelas.
Por seu turno, as condições desfavoráveis de habitação ou moradia, como ocorre nos países em desenvolvimento ou emergentes, com a proliferação de favelas, cortiços, casas de tapera, de pau a pique etc., propiciam a promiscuidade, a perdição, o desaparecimento de valores, o desrespeito ao próximo e outros desvalores de comportamento, empurrando aqueles que vivem ou sobrevivem nessas situações à prostituição, ao tráfico de drogas, aos crimes contra o patrimônio e contra a vida.
A migração como movimento interno populacional dentro de um país pode causar dificuldades de adaptação em face da diferença de costumes, usos, hábitos, valores etc. de uma região para outra.
Essa alteração de culturas e valores, como ocorre com os migrantes nordestinos e os nisseis (Marlet, 1995) em São Paulo, gera um antagonismo de convivência, isto é, os migrantes são obrigados a conviver com uma cultura do lar e outra fora do lar, causando desorientação, que pode, diante de uma situação anormal, obter como resposta uma conduta delituosa.
É razoável também que nos países em desenvolvimento a absorção dos migrantes ao mercado de trabalho seja muito difícil, quando não rara, contribuindo para o aumento de pobreza e miséria, fatores que sabidamente fomentam para a criminalidade.
O crescimento populacional desordenado ou não planejado figura como fator delitógeno.
O aumento das taxas criminais por áreas geográficas é proporcional ao crescimento da respectiva densidade demográfica populacional, conforme estudos levados a efeito pela Escola de Chicago.
Assim, o crescimento desmedido da população de dada área fortalece o índice de desempregados e de subempregados, desencadeando o fenômeno pelo qual se aumenta a criminalidade na exata medida em que as condições econômicas aumentam a pobreza, incidindo aí a componente social.
Então, quanto mais fermento (pobreza), maior o tamanho do bolo (criminalidade), ocorrendo aquilo que se chama de “fermento social da criminalidade”!
No mesmo sentido, já tivemos3 a oportunidade de ressaltar que ao Estado cabe realizar o bem comum do povo, mediante diversas ações, incluindo a mantença da ordem pública, de sorte que “manter o equilíbrio entre a área territorial e a população é exercício puro do poder de polícia estatal”.
Inexistindo esse necessário equilíbrio demográfico, afloram os conflitos de convivência, de modo que, nos morros, cortiços, favelas, loteamentos clandestinos etc., o fermento social da criminalidade aparece diuturnamente, ensejando a continuidade, ou melhor, um progressivo, contínuo, perigoso e alarmante crescimento do número de infrações penais, de todos os matizes (crimes contra a vida, o patrimônio, a saúde pública etc.).
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14.6 Preconceito. A criminalidade feminina
Preconceito é estereótipo negativo, ideia negativa pré-concebida. Discriminação é o preconceito em ação, em atividade.
A doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa. Não existe justificação para a discriminação racial, em teoria ou na prática, em lugar algum.
A discriminação entre as pessoas por motivo de raça, cor ou origem étnica é um obstáculo às relações amistosas e pacíficas entre as nações, sendo capaz de perturbar a paz e a segurança entre os povos e a harmonia de pessoas vivendo lado a lado, até dentro do mesmo Estado, muitas vezes causando escaramuças e guerrilhas.
A existência de barreiras raciais repugna aos ideais de qualquer sociedade humana digna e concretizada em um Estado de Direito.
Daí por que a tolerância é a harmonia dos opostos, a igualdade na diferença, a convivência pacífica dos desiguais.
Em tema de criminologia, há quem afirme existir um número maior de delitos cometidos por negros do que por brancos, porém, dada a ausência de pesquisas e estatísticas sérias acerca do assunto, comungamos da opinião de João Farias Junior (2009), para quem “a vontade não age por si só, mas de acordo com a formação moral do caráter, e não de acordo com a cor da pele”.
No Brasil a escravatura deixou máculas inapagáveis nos descendentes da diáspora africana, que, torturados, aprisionados, retirados à força de seu continente e submetidos à opressão do colonizador europeu, até hoje encontram dificuldades de acesso na pirâmide social e econômica.
Depois da abolição da escravatura, o que se viu foram três consequências: a migração (não só de negros, mas de brancos espoliados), a favelização (nos morros e na periferia das grandes cidades) e finalmente a instalação da criminalidade nesses espaços.
Quem se propõe a estudar a criminalidade da mulher não encontrará material adequado e profícuo, existindo certa negligência no assunto.
O criminólogo Ayush Morad Amar (1987) afirma haver duas hipóteses acerca da menor relevância da criminalidade feminina: divergência de frequência entre os delitos praticados por homens e mulheres e diferença de tratamento que os órgãos públicos (Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário, Sistema Penitenciário) dispensam às mulheres, resultando daí os problemas atinentes à dinâmica do concurso destas na criminalidade masculina; as cifras negras da criminalidade da mulher; a discriminação do Poder Público e da sociedade.
Registre-se que o crime organizado nos grandes centros urbanos (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Recife, Salvador etc.) vem cooptando a mulher quer para auxílio material, quer para favorecimento pessoal de seus “irmãos”, ou ainda na condição de “mulas” para o narcotráfico.
Todavia, o maior dos preconceitos que pode funcionar como fator criminógeno é o de natureza econômica, na medida em que a pobreza e a miséria destroem a dignidade humana, rebaixando o homem para a sarjeta da vida.
A educação e o ensino são fatores inibitórios de criminalidade. No entanto, sua carência ou defeitos podem contribuir para estabelecer um senso moral distorcido na primeira infância. Assim, a educação informal (família, sociedade) e a formal (escola) assumem relevância indisfarçável na modelagem da personalidade humana.
14.8 Mal-vivência. Classes sociais
Entende-se por mal-vivência, no dizer do douto Hilário Veiga de Carvalho (1973), um grupo polimorfo de indivíduos que vivem à margem da sociedade, em situação de parasitismo, sem aptidão para o trabalho, em razão de causas endógenas e exógenas que representam um perigo social.
Na verdade, são seres excluídos, doentes biológica e socialmente. O Estado os incrimina por vadiagem (art. 59 da Lei das Contravenções Penais), mas, a criminologia sabe que esses seres infelizes são uma consequência da sociedade discriminatória e violenta em que vivem.
A demonstrar que as condições econômicas são o fator maior de discriminação entre os homens, referendadas, inclusive, pelo direito penal, verifique-se, a título de humor tão somente, o parágrafo único do art. 59 da LCP, ao afirmar que a superveniência de renda que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena. Em outras palavras, como alertava há mais de meio século o professor Afrânio Peixoto (1953): um vagabundo pobre é um vagabundo, mas um vagabundo rico é um rico excêntrico...
Contribuem para esse estado de patologia social dois tipos de fatores: biológicos e mesológicos.
Dentre os fatores biológicos4 destacam-se:
a) mal-vivência étnica (povo cigano, que não se adapta às regras sociais de convivência útil) |
b) mal-vivência constitucional ou orgânica (impulsão à instabilidade, não fincando raízes em lugar nenhum, como ocorre com andarilhos, tropeiros, guias etc.) |
c) mal-vivência de neuróticos, paranoicos, epiléticos, oligofrênicos, que se lançam num automatismo ambulatório, saindo a esmo mundo afora |
No campo mesológico vislumbram-se os seguintes fatores5:
a) infância abandonada (lares desfeitos, órfãos, “órfãos de pais vivos”) |
b) nomadismo (fluxo migratório de desempregados) |
c) desemprego, subemprego (consequência da economia voraz de mercado, da globalização, do industrialismo etc.) |
Nas sociedades modernas, nas quais se insere a brasileira, tradicionalmente as classes sociais se dividem em três grupos: classe baixa, classe média e classe alta.
A classe baixa é aquela composta de indivíduos carentes de toda ordem, não só no aspecto financeiro e cultural, mas também daquele segmento esquecido pelos governantes.
A classe média ou burguesia é composta de pequenos comerciantes, industriais, profissionais liberais etc.
A classe alta (high society) é composta dos detentores do poder econômico, quais sejam, grandes empresários, aristocratas, políticos, que manipulam a vida em sociedade ao sabor de seus interesses.
A prática delitiva não é a desgraça de uma só classe, embora se saiba que os integrantes da classe baixa abarrotam os presídios.
No mesmo compasso, as cifras negras de criminalidade empresarial ou cifras douradas (crimes do colarinho branco; evasão de divisas; licitações fraudulentas; sonegação fiscal etc.) estão a esconder o pior tipo dos criminosos, tendo em vista sua nocividade social.
Nesse esgrimir de classes sociais na luta pela melhoria de vida, contra a exploração do homem pelo homem (a fundamentar a criminologia radical), a politização do crime é algo que preocupa juristas, psicólogos, criminólogos etc.
1 No Estado de São Paulo, a corroborar nosso entendimento, editou-se a Resolução da Secretaria de Segurança Pública n. 240, de 05-10-2009, que cria um programa de prevenção e repressão aos roubos em condomínios.
2 Apud Roberto Pacheco de Toledo, delegado de Polícia em São Paulo, em discurso proferido por ocasião do evento social em homenagem ao Dia das Crianças, na Delegacia Seccional Norte/Capital, em outubro de 2006.
3 Direito policial, São Paulo: Método, 2009, p. 157.
4 Apud Hilário Veiga de Carvalho, op. cit., p. 310 e seguintes.
5 Idem.