7º Capítulo

Vitimologia



7.1 Conceito de vitimologia

A vitimologia é o terceiro componente da antiga tríade criminológica: criminoso, vítima e ato (fato crime). Acrescentamos ainda os meios de contenção social.

É, na verdade, um conceito evolutivo, passando do aspecto religioso (imolado ou sacrificado; evitar a ira dos deuses) para o jurídico.

A vítima, que sofre um resultado infeliz dos próprios atos (suicida), das ações de outrem (homicídio) e do acaso (acidente), esteve relegada a plano inferior desde a Escola Clássica (preocupava-se com o crime), passando pela Escola Positiva (preocupava-se com o criminoso).

Por conta de razões culturais e políticas, a sociedade sempre devotou muito mais ódio pelo transgressor do que piedade pelo ofendido.



A vitimologia é a ciência que se ocupa da vítima e da vitimização, cujo objeto é a existência de menos vítimas na sociedade, quando esta tiver real interesse nisso.

(Benjamim Mendelsohn)



7.2 Evolução histórica

Os primeiros trabalhos sobre vítimas, segundo o professor Marlet (1995), foram de Hans Gross (1901). Somente a partir da década de 1940, com Von Hentig e Benjamim Mendelsohn, é que se começou a fazer um estudo sistemático das vítimas. Conforme já se disse, em razão da postura das Escolas Clássica e Positiva, naquela época ao direito penal só importavam o delito, o delinquente e a pena.

Depois, com o 1º Simpósio Internacional de Vitimologia, de 1973, em Israel, sob a supervisão do famoso criminólogo chileno Israel Drapkin, impulsionaram-se os estudos e a atenção comportamentais, buscando traçar perfis de vítimas potenciais, com a interação do direito penal, da psicologia e da psiquiatria.

7.3 Classificação das vítimas

Uma primeira classificação importante das vítimas é atribuída a Benjamim Mendelsohn, que leva em conta a participação ou provocação da vítima: a) vítimas ideais (completamente inocentes); b) vítimas menos culpadas que os criminosos (ex ignorantia); c) vítimas tão culpadas quanto os criminosos (dupla suicida, aborto consentido, eutanásia); d) vítimas mais culpadas que os criminosos (vítimas por provocação que dão causa ao delito); e) timas como únicas culpadas (vítimas agressoras, simuladas e imaginárias).

Dessa forma, Mendelsohn sintetiza a classificação em três grupos: a) vítima inocente, que não concorre de forma alguma para o injusto típico; b) vítima provocadora, que, voluntária ou imprudentemente, colabora com o ânimo criminoso do agente; c) vítima agressora, simuladora ou imaginária, suposta ou pseudovítima, que acaba justificando a legítima defesa de seu agressor.

É muito importante aferir o binômio criminoso/vítima, sobretudo quando esta interage no fato típico, de forma que a análise de seu perfil psicológico desponta como fator a ser considerado no desate judicial do delito (vide, nos casos de extorsão mediante sequestro, a ocorrência da chamada “síndrome de Estocolmo”, na qual a vítima se afeiçoa ao criminoso e interage com ele pelo próprio instinto de sobrevivência).

Por sua vez, Hans von Hentig elaborou a seguinte classificação: 1º grupo – criminoso – vítima – criminoso (sucessivamente), reincidente que é hostilizado no cárcere, vindo a delinquir novamente pela repulsa social que encontra fora da cadeia; 2º grupo – criminoso – vítima – criminoso (simultaneamente), caso das vítimas de drogas que de usuárias passam a ser traficantes; 3º grupo – criminoso – vítima (imprevisível), por exemplo, linchamentos, saques, epilepsia, alcoolismo etc.



 



7.4 Complexo criminógeno delinquente e vítima

É importante analisar a relação entre criminoso e vítima (par penal) para aferir o dolo e a culpa daquele, bem como a responsabilidade da vítima ou sua contribuição involuntária para o fato crime. Isso repercute na adequação típica e na aplicação da pena (art. 59 do CP). É inegável o papel da vítima no homicídio privilegiado, por exemplo. Nos crimes sexuais muitas vezes o autor é “seduzido” pela vítima, que não é tão vítima assim.

Da mesma maneira que existem criminosos reincidentes, é certa para a criminologia a existência de vítimas latentes ou potenciais (“potencial de receptividade vitimal”).

Determinadas pessoas padecem de um impulso fatal e irresistível para serem vítimas dos mesmos crimes. Exemplos: vigias de bancos e lojas; médicos vitimados por denúncias caluniosas; policiais acusados de agressões etc.

Assim é que, como há delinquentes recidivos, há vítimas voluntárias, como os “encrenqueiros”, os “truculentos”, os “piadistas” etc.

No entanto, muitas pessoas – vítimas autênticas – nem contribuem para o evento criminal por ação ou omissão, nem interagem com o comportamento do autor do delito. São completamente inocentes na compreensão cênica do delito.

7.5 Política criminal de tratamento da vítima

Fundado em São Paulo, em 1987, o Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper é uma instituição de ensino sem fins lucrativos que tem o compromisso de ser um centro de referência em ensino e pesquisa nas áreas de negócios e economia.

Nesse terreno, coadjuvado pelo Centro de Políticas Públicas do IFB (Instituto Futuro Brasil), realizou importante pesquisa acerca da vitimização na cidade de São Paulo no período de 2003 a 2008, revelando dados inéditos sobre a criminalidade. O estudo mostra a evolução da violência em São Paulo nesse período, com dados de criminalidade como estelionato, agressão verbal, agressão física, trânsito, crime contra a pessoa, roubo de veículos e roubos a residências. O estudo utilizou como base pesquisa domiciliar com 2.967 pessoas na cidade de São Paulo no ano de 2008.

À guisa de ilustração, transcrevemos as tabelas1 acerca da pesquisa de vitimização acima referida:





 





Criminalidade ao longo da vida e renda

Baixa

Média

 

N

%

N

%

Carro ou moto roubado ou furtado

78

6,6

316

15,8

Outro bem roubado ou furtado

315

26,6

675

33,8

Casa invadida por assaltantes

148

12,5

361

18,1

Sofreu agressão física

131

11,1

218

10,9

Ameaçado por uma arma de fogo

185

15,6

470

23,5

Alguém disparou uma arma de fogo contra

41

3,5

75

3,8

Foi ferido por arma de fogo

20

1,7

21

1,1

Ameaçado por outra arma

67

5,7

151

7,6

Ferido por outra arma

28

2,4

31

1,6

Usou ou mostrou arma para ser defender

24

2,0

59

3,0

Sofreu pelo menos um tipo de crime

556

47,1

1177

59,0



Criminalidade ao longo da vida e renda

Alta

Total

 

N

%

N

%

Carro ou moto roubado ou furtado

267

33,3

816

16,3

Outro bem roubado ou furtado

408

50,7

1727

34,5

Casa invadida por assaltantes

223

27,8

916

18,3

Sofreu agressão física

118

14,7

568

11,4

Ameaçado por uma arma de fogo

266

33,1

1142

22,8

Alguém disparou uma arma de fogo contra

43

5,4

193

3,9

Foi ferido por arma de fogo

8

1,0

58

1,2

Ameaçado por outra arma

116

14,4

402

8,0

Ferido por outra arma

13

1,6

85

1,7

Usou ou mostrou arma para ser defender

36

4,5

148

3,0

Sofreu pelo menos um tipo de crime

616

76,8

2889

57,9







Por sua vez, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo elaborou pesquisa, coordenada pelo sociólogo Túlio Kahn2, que asseverou, dentre outros relevantes criminais, que o homicídio é o tipo de crime com consequên­cias mais graves para a sociedade, o que eleva muito a importância de estudar sua ocorrência com o objetivo de entendê-lo e encontrar ações efetivas no seu combate e prevenção.

A ocorrência de homicídios tem predominância noturna; após as 19h a incidência aumenta muito, atingindo o pico às 22h. Depois o número de ocorrências decresce durante a madrugada, mas ainda com altas taxas, até atingir o ponto mínimo por volta das 10h.

Tendo em vista os dias da semana, a ocorrência de homicídios se concentra nos finais de semana, tanto no sábado como no domingo. A diferença na distribuição dos dois dias reside no fato de que no sábado existe um aumento de homicídios durante todo o dia, enquanto no domingo o aumento ocorre praticamente só no período da manhã.

Por derradeiro, ao contrário da maioria dos tipos de crime, os homicídios estão mais relacionados a favelas do que a qualquer outro tipo de infraestrutura urbana, relacionando-se, num só contexto, às precárias condições ambientais e fatores socioeconômicos e até culturais.

Esse introito deu-se para demonstrarmos a importância do estudo estatístico para o fim de criar uma política pública de suporte às vítimas da criminalidade.

As modernas tendências criminológicas aparecem desde o final do século XX como consequência de mobilizações sociais em prol de vítimas.

O direito penal moderno sofreu um forte golpe em seu parâmetro de observação da vítima com neutralidade. A neutralização da vítima é cada vez mais afetada pelos anseios sociais que a empurram para um papel de maior relevância no processo penal.

Na Europa (Alemanha e Espanha) e nos EUA as tendências político-criminais desenham-se em quatro grandes vertentes:



1) Maior proteção de vítimas, mediante a redução de direitos e garantias do criminoso no processo penal (por exemplo, uso de prova ilícita; maior valor ao depoimento da vítima que do réu; facilitação da prisão preventiva etc.), o que provocou a indignação e a perplexidade de Hassemer (2008, p. 148).

2) Investimento na aplicação e execução de penas de prisão, sobretudo a perpétua, assim também a pena de morte, afastando a reinserção social para estupradores, terroristas, traficantes, assassinos em série etc.; paralelamente, a adoção de medidas rígidas de policiamento com base na lei e ordem e tolerância zero para todos os crimes, inclusive os de menor poder ofensivo, o que também provocou a ira do renomado penalista alemão.

3) Ampliação da participação da vítima no processo penal, auxiliando na produção de provas e mesmo substituindo o acusador oficial.

4) Por derradeiro, o fomento à ajuda e atenção à vítima por parte das instituições públicas, com a criação de órgãos de apoio e proteção, bem como o dever estatal de indenização, caso o réu seja insolvente, prevenindo-se a vitimização terciária.



No Brasil as ações afirmativas de tutela de vítimas da violência são ainda extremamente tímidas, na medida em que se vive uma crise de valores morais, culturais e da própria autoridade constituída, com escândalos de corrupção grassando nos três poderes da República.

Contudo, particular destaque merece a edição da recente Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que refletiu a preocupação da sociedade brasileira com a violência doméstica contra a mulher.

7.6 Vitimização primária, secundária e terciária

A legislação penal e processual penal brasileira emprega os termos “vítima”, “ofendido” e “lesado” indistintamente, por vezes até como sinônimos. Porém, entende-se que a palavra “vítima” tem cabimento específico nos crimes contra a pessoa; “ofendido” designa aquele que sofreu delitos contra a honra; e “lesado” alcança as pessoas que sofreram ataques a seu patrimônio.

Para a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, das Nações Unidas (ONU-1985), define-se “vítimas” como “as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental, um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus direitos fundamentais, como consequência de atos ou de omissões violadores das leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de poder”.

Assim, vítima é quem sofreu ou foi agredido de alguma maneira em razão de uma infração penal, cometida por um agente.

A criminologia, ao analisar a questão vitimológica, classifica a vitimização em três grandes grupos, conforme veremos adiante.

• Vitimização primária: é normalmente entendida como aquela provocada pelo cometimento do crime, pela conduta violadora dos direitos da vítima – pode causar danos variados, materiais, físicos, psicológicos, de acordo com a natureza da infração, a personalidade da vítima, sua relação com o agente violador, a extensão do dano etc. Então, é aquela que corresponde aos danos à vítima decorrentes do crime.

• Vitimização secundária: ou sobrevitimização; entende-se ser aquela causada pelas instâncias formais de controle social, no decorrer do processo de registro e apuração do crime, com o sofrimento adicional causado pela dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito policial e processo penal).

• Vitimização terciária: falta de amparo dos órgãos públicos às vítimas; nesse contexto, a própria sociedade não acolhe a vítima, e muitas vezes a incentiva a não denunciar o delito às autoridades, ocorrendo o que se chama de cifra negra (quantidade de crimes que não chegam ao conhecimento do Estado).









1 Dados obtidos no site <http://www.insper.org.br/docentes-e-pesquisa/centro-de-politicas-publicas/pesquisa-vitimizacao>, acesso em 2-10-2009.

2 Apud http://www.ssp.sp.gov.br/estatisticas/downloads/manual_estudos_criminologicos_2.pdf, acesso em 2-10-2009.