4º Capítulo

Estatística criminal, cifra negra e prognóstico criminal



4.1 Estatística criminal

Depois do século XIX, as ciências criminais alcançaram projeção, daí por que passaram a se preocupar com o estudo do fenômeno da criminalidade, levando em consideração suas causas. Nesse sentido, como já dissemos, destacou-se a atuação do matemático belga Quetelet, autor da Escola Cartográfica (verdadeira ponte entre clássicos e positivistas), que estabeleceu o conceito de homem médio e alertou para a questão dos crimes não comunicados ao Poder Público (cifra negra).

Os criminólogos sustentam que, por intermédio das estatísticas criminais, pode-se conhecer o liame causal entre os fatores de criminalidade e os ilícitos criminais praticados.

Destarte, as estatísticas criminais servem para fundamentar a política criminal e a doutrina de segurança pública quanto à prevenção e à repressão criminais.

No entanto, é preciso ter cuidado ao analisar as estatísticas criminais oficiais, na medida em que há uma quantia significativa de delitos não comunicados ao Poder Público1, quer por inércia ou desinteresse das vítimas, quer por outras causas, dentre as quais os erros de coleta e a manipulação de dados pelo Estado2.

Nesse sentido, convém diferenciar a criminalidade real da criminalidade revelada e da cifra negra: a primeira é a quantidade efetiva de crimes perpetrados pelos delinquentes; a segunda é o percentual que chega ao conhecimento do Estado; a terceira, a porcentagem não comunicada ou elucidada.

Como subtipo da cifra negra, convém mencionar a denominada cifra dourada, isto é, as infrações penais praticadas pela elite, não reveladas ou apuradas, por exemplo, os crimes de sonegação fiscal, as falências fraudulentas, a lavagem de dinheiro, os crimes eleitorais etc.



 



4.2 Cifra negra. Cifra dourada

A correta delimitação da quantidade de crimes cometidos em determinado Estado é fator preponderante para a correta elaboração das normas jurídico-penais. Lamentavelmente, mesmo em países com certa cultura de estatísticas, dúvidas são levantadas sobre a confiabilidade dos dados divulgados. Isso decorre do fato de que apenas uma parcela dos crimes reais é registrada oficialmente pelo Estado.

Ressalte-se que os dados somente se oficializam, em termos criminais, segundo uma lógica de atos tríplices: detecção do crime + notificação + registro em boletim de ocorrência.

Antes de observar os crimes misteriosos ou ainda o comportamento omissivo das vítimas que não denunciam os crimes sofridos, é preciso analisar a forma como são coletadas as estatísticas criminais.

A atividade de segurança pública no Brasil foi delegada aos Estados (art. 144 da CF), salvo os órgãos federais. Nesse sentido, cada ente federativo tem competência para organizar suas polícias (civil e militar). É importante ressaltar que, por força do art. 23 do Código de Processo Penal, a autoridade policial, ao relatar o inquérito policial e encaminhá-lo a juízo, deverá oficiar ao Instituto de Estatística para informar os dados do delito e do delinquente.

Assim, cada Estado tem um órgão central de coleta e apresentação das estatísticas oficiais de crime, para receber os dados provenientes da polícia, que os compila de duas maneiras: ou por ação direta ou pelo relato de vítimas e/ou testemunhas.

Dessa forma, a estatística oficial pode estar contaminada por alguns equívocos.

É sabido que governantes inescrupulosos determinam a manipulação das estatísticas de criminalidade, com propósitos eleitoreiros. Trata-se de uma maneira sórdida de mascarar os verdadeiros índices de criminalidade para demonstrar a falsa ideia de que a política de governo está sendo conduzida eficientemente na seara da segurança pública. Sabe-se que o aumento contínuo da criminalidade provoca clamor público e, o que é pior, a insatisfação perante os órgãos de justiça e polícia, levando a uma situação de fracasso governamental em face da opinião pública. Como no Brasil os órgãos que elaboram as estatísticas são públicos (vinculados a Ministérios ou secretarias de Estado), suas compilações estarão sempre sujeitas a pressões políticas e, portanto, postas sob a pecha de suspeição.

De outra banda, há que registrar que muitos delitos são registrados erroneamente, por falha da polícia, além da manipulação às avessas, isto é, reduz-se o índice de criminalidade por meio do aumento de casos esclarecidos e da diminuição de casos registrados oficialmente.

Por derradeiro, há uma série expressiva de delitos não comunicados pelas vítimas às autoridades. Várias são as razões que as levam a isso: 1) a vítima omite o ato criminoso por vergonha ou medo (crimes sexuais); 2) a vítima entende que é inútil procurar a polícia, pois o bem violado é mínimo (pequenos furtos); 3) a vítima é coagida pelo criminoso (vizinho ou conhecido); 4) a vítima é parente do criminoso; 5) a vítima não acredita no aparato policial nem no sistema judicial etc.

Nesse contexto, ocorre aquilo que se denomina cifra negra, isto é, o número de delitos que por alguma razão não são levados ao conhecimento das autoridades, contribuindo para uma estatística divorciada da realidade fenomênica.

Sustenta Eduardo Luiz Santos Cabette3, com apoio em vasta doutrina, a existência de uma cifra dourada, que “representa a criminalidade de ‘colarinho branco’, definida como práticas antissociais impunes do poder político e econômico (a nível nacional e internacional), em prejuízo da coletividade e dos cidadãos e em proveito das oligarquias econômico-financeiras”.

Então haveria dupla falha nos dados estatísticos oficiais: a cifra negra (representada pela ausência de dados dos crimes de rua, como furtos, roubos, estupros etc.) e a cifra dourada (ausência de registro dos crimes políticos, ambientais, de corrupção etc.).

De lege ferenda, mostra-se imprescindível a criação de uma agência independente, sem vínculos governamentais, com atribuições legais de controle e levantamento dos dados referentes à criminalidade, além da estabilidade de seus dirigentes.



 



4.3 Técnicas de investigação da cifra negra

As cifras negras, ou campo obscuro da criminalidade, são uma preocupação histórica dos criminólogos.

Desde a criminologia tradicional já se acentuava a necessidade de investigar os delitos que não eram comunicados às instâncias de controle do Estado.

A maior crítica feita à criminologia tradicional, de cunho positivista, direcionava-se no sentido de que os estudos estatísticos levavam em conta apenas a população de encarcerados. Assim, o erro maior era procurar atribuir ao criminoso “fichado” os índices reais de delinquência. Ocorre que isso fugia à realidade sensível, pois inúmeros delitos deixavam de ser comunicados ou apurados pelos órgãos do Estado.

Acentua, com severa crítica, Alessandro Baratta4 que “o sistema só pode aplicar sanções penais previstas pela lei a um percentual dos reais infratores que, numa média relativa a todas as figuras delitivas, nas sociedades centrais, não é superior a um por cento”.

É evidente que os estudos sobre criminosos incidem, majoritariamente, nas populações carcerárias, e isso facilita uma visão distorcida da realidade criminal, conduzindo o pesquisador aos erros decorrentes do labelling approach (os criminosos são etiquetados ou rotulados como tais pela sociedade).

Na verdade, o crime é um fenômeno generalizado na sociedade; não só os etiquetados, desviados ou bandidos violam as leis. Ainda que a maioria das condenações penais recaia sobre eles, existem grupos sociais que usufruem de uma impunidade virtual.

Muitas investigações, desenvolvidas sobretudo nos Estados Unidos e na Europa escandinava, demonstram que o risco de prisão aumenta sensivelmente em razão inversa à da situação econômica do acusado. Isso é corolário da chamada cifra dourada ou impunidade dos delitos de colarinho branco. Os crimes econômicos, por exemplo, não criam carreiras criminais e não estigmatizam seus autores. O estigma de delinquente é sentido no criminoso pobre, no proletário, que cresce em ambiente hostil e precário, divorciado das condições econômicas e afetivas de inserção social, transformado em adulto instável e marginalizado na comunidade.

Diante desse cenário, numerosos estudos foram realizados para detectar a real cifra negra de criminalidade. Os processos empregados são variados, na medida em que se pretende reduzir ao máximo a margem de erro.

Assim, são propostas5 as seguintes técnicas de investigação da cifra negra:



a) investigação em face dos autores ou técnica de autodenúncia;

b) investigação em face de vítimas;

c) investigação em face de informantes criminais;

d) sistema de variáveis heterogêneas;

e) técnica do segmento operativo destinado aos agentes de controle formal (polícia e tribunais).



A investigação em face de autores de crime (autodenúncia) realiza-se com o interrogatório de pessoas em geral acerca dos fatos criminosos cometidos, resultando deles ou não o processo penal. As falhas aqui existentes levam em conta a amostragem populacional e o grau de sinceridade dos interrogados, variando de acordo com o grau de cultura e cidadania do povo.

a investigação em face de vítimas de delitos traz uma vertente diferenciada, pois são interrogadas pessoas em geral que tenham suportado algum tipo de crime. Aqui também se procura a causa da não comunicação ou não indiciação dos implicados, variando da tipologia penal (estupros) à participação da vítima (jogos de azar) e mesmo à cumplicidade (favorecimento pessoal), o que pode induzir o investigador a erro. Aliás, é sabido que muitas vítimas não denunciam certos crimes por medo de represálias6, por não considerar grave a conduta lesiva, por não confiar na polícia e na justiça; por serem novamente vitimizadas pelo sistema etc.

A investigação em face de informantes criminais tem a vantagem de apresentar uma amostragem de terceiras pessoas de forma muito desinibida e confiável.

Todavia, da mesma maneira que a autodenúncia, muitos informantes são criminosos que vivem da delação alheia, alimentados pela mecânica do sistema, de sorte que esse método pode muitas vezes significar um exercício de revanchismo ou retraimento (cúmplices).

O sistema de variáveis heterogêneas impõe três níveis de controle informático, quais sejam: a análise da cifra negra dos delitos leves, que é maior em razão dos crimes graves; a tendência à autocomposição das vítimas nos delitos leves, a variação dos métodos de análise de país para país.

Por derradeiro, a técnica do segmento operativo dos agentes de controle formal (polícia e tribunais) muda o foco e direciona seus estudos no sentido de pesquisar as causas reais de vulnerabilidade e de disfunções do Sistema Criminal.

Todos os órgãos do Sistema Criminal intervêm num processo de filtração por etapas, pois grande parcela de vítimas não denuncia os crimes que sofreram à polícia; esta, por sua vez, não instaura todas as investigações necessárias, não transmitindo a juízo tudo o que apurou; e os tribunais, por seu turno, arquivam boa parte das investigações sob o manto do garantismo penal.

4.4 Prognóstico criminológico

É a probabilidade de o criminoso reincidir, em razão de certos dados estatísticos coletados. Nunca haverá certeza, porque não se conhece por completo o consciente do autor.

Os prognósticos criminais podem ser clínicos e estatísticos.

Prognósticos clínicos são aqueles em que se faz um detalhamento do criminoso, por meio da interdisciplinaridade: médicos; psicólogos, assistentes sociais etc.

Prognósticos estatísticos são aqueles baseados em tabelas de predição, que não levam em conta certos fatores internos e só servem para orientar o estudo de um tipo específico de crime e de seus autores (condenados). Nesse contexto, é bom ter em mira o índice de criminalidade (vários fatores), pois devem ser levados em conta os fatores psicoevolutivos, jurídico-penais e ressocializantes (penitenciários).

Os fatores psicoevolutivos levam em conta a evolução da personalidade do agente, compreendendo: a) doenças graves infantojuvenis com repercussão somático-psíquica; b) desagregação familiar; c) interrupção escolar ou do trabalho; d) automanutenção precoce; e) instabilidade profissional; f) internação em instituição de tratamento para menores; g) fugas de casa, da escola etc.; h) integração com grupos improdutivos; i) distúrbios precoces de conduta; j) perturbações psíquicas.

Os fatores jurídico-penais desenham a vida delitiva do indivíduo, compreendendo: a) início da criminalidade antes dos 18 anos; b) muitos antecedentes penais e policiais (“folha corrida”); c) reincidência rápida; d) criminalidade interlocal; e) quadrilhas (facções criminosas), qualificadoras ou agravantes; f) tipo de crime (contra o patrimônio, os costumes, a pessoa).

Os fatores ressocializantes dizem respeito ao aproveitamento das medidas repressivas, embora no Brasil as instituições penitenciárias sejam, em regra, verdadeiras pocilgas, que funcionam como “universidade criminosa”, tamanho o desrespeito aos direitos mínimos do homem. Registrem-se: a) inadaptação à disciplina carcerária e às regras prisionais; b) precário ou nulo ajuste ao trabalho interno; c) péssimo aproveitamento escolar e profissional na cadeia; d) permanência nos regimes iniciais de pena.







1 O Núcleo de Estudos de Violência da USP calcula que apenas a terça parte dos crimes é notificada ao Estado.

2 O jornal Folha de S.Paulo, em edição de 17-01-2005, noticia que casos de homicídio em São Paulo eram registrados como “encontro de cadáver” ou “morte a esclarecer”, aduzindo o mascaramento de dados criminais.

3 As estatísticas criminais sob um enfoque criminológico crítico. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1326, 17 fev. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9497>. Acesso em: 25 ago. 2009.

4 Apud Raul Cervini, Os processos de descriminalização, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 186.

5 Apud Raúl Cervini, op. cit., p. 189.

6 É conhecida nas favelas de São Paulo e Rio a denominada “Lei do Silêncio”, imposta pelo crime organizado, por meio da qual os integrantes da comunidade silenciam acerca dos crimes testemunhados ou sofridos, sob pena de sofrerem represália por parte dos criminosos.